Luís Vaz de Camões (1524-1580)

Sonetos

I

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento, 
 
o gosto de um suave pensamento 
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento, 
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos 
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos... 
E sabei que, segundo o amor tiverdes, 
tereis o entendimento de meus versos!

II

Eu cantarei de amor tão docemente, 
por uns termos em si tão concertados, 
 
que dous mil acidentes namorados 
faça sentir ao peito que não sente. 

Farei que amor a todos avivente, 
pintando mil segredos delicados, 
brandas iras, suspiros namorados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto 
de vossa vista branda e rigorosa, 
contentar me hei dizendo a menos parte.

Porém, para cantar de vosso gesto 
a composição alta e milagrosa, 
aqui falta saber, engenho e arte. 

III

 
Busque Amor novas artes, novo engenho, 
para matar me, e novas esquivanças; 
 
que não pode tirar me as esperanças, 
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde 
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto 
um não sei quê, que nasce não sei onde, 
vem não sei como, e dói não sei porquê. 

IV

 
Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
 
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando, 
num'hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando, 
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora. 

V

 
Amor é um fogo que arde sem se ver, 
é ferida que dói, e não se sente; 
 
é um contentamento descontente, 
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer; 
é um andar solitário entre a gente; 
é nunca contentar se de contente; 
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; 
é servir a quem vence, o vencedor; 
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor 
nos corações humanos amizade, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

VI

Doces águas e claras do Mondego, 
doce repouso de minha lembrança, 
 
onde a comprida e pérfida esperança 
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego 
que inda a memória longa, que me alcança, 
me não deixa de vós fazer mudança, 
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento 
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha, 
nas asas do ligeiro pensamento, 
para vós, águas, voa, e em vós se banha. 

VII

 
Ofogo que na branda cera ardia, 
vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo, 
 
se acendeu de outro fogo do desejo, 
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se encendia, 
da grande impaciência fez despejo, 
e remetendo com furor sobejo 
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve 
[a] apagar seus ardores e tormentos 
na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram se, Senhora, os Elementos 
de vós, e queima o fogo aquela neve 
que queima corações e pensamentos. 
 

VIII

 
Pede o desejo, Dama, que vos veja, 
não entende o que pede; está enganado. 
 
É este amor tão fino e tão delgado, 
que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja 
que não queira perpétuo seu estado; 
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana; 
que, como a grave pedra tem por arte 
o centro desejar da natureza,

assi o pensamento (pola parte que 
vai tomar de mim, terreste [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza. 

IX

 
Quando da bela vista e doce riso, 
tomando estão meus olhos mantimento, 
 
tão enlevado sinto o pensamento 
que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento; 
assi, que em caso tal, segundo sento, 
assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo, 
que não é de estranhar, Dama excelente, 
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas. 

X

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
vendo-vos com juízo sossegado, 
 
se o Minino que de olhos é privado, 
nas mininas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora, 
ali vive das gentes venerado; 
que o vivo lume e o rosto delicado, 
imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas 
que fios crespos de ouro vão cercando, 
se por entre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas 
almas estão no peito traspassando, 
assi como um cristal o Sol traspassa... 

XI

Tomou-me vossa vista soberana 
adonde tinha armas mais à mão, 
 
 por mostrar que quem busca defensão 
contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana, 
deixou-me armar primeiro da Razão; 
cuidei de me salvar, mas foi em vão, 
que contra o Céu não val defensa humana.

Mas porém se vos tinha prometido 
o vosso alto destino esta vitória, 
ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que, posto que estivesse apercebido, 
não levais de vencer-me grande glória: 
maior a levo eu de ser vencido. 

XII

Vossos olhos, Senhora, que competem 
co Sol em fermosura e claridade, 
 
enchem os meus de tal suavidade 
que em lágrimas, de vê-los, se derretem.

Meus sentidos vencidos se sometem 
assi cegos a tanta majestade; 
e da triste prisão, da escuridade, 
cheios de medo, por fugir remetem.

Mas se nisto me vedes por acerto, 
o áspero desprezo com que olhais 
torna a espertar a alma enfraquecida.

Ó gentil cura e estranho desconcerto! 
Que fará o favor que vós não dais, 
quando o vosso desprezo torna a vida? 

XIII

 
Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal, 
 
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual, 
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes, 
não me alegrem verduras deleitosas, 
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas, 
e nascerão saudades de meu bem. 

XIV

Está o lascivo e doce passarinho 
com o biquinho as penas ordenando; 
 
o verso sem medida, alegre e brando,
espedindo no rústico raminho;

o cruel caçador (que do caminho 
se vem calado e manso desviando) 
na pronta vista a seta endireitando, 
lhe dá no Estígio lago eterno ninho.

Dest' arte o coração, que livre andava,
(posto que já de longe destinado) 
onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
para que me tomasse descuidado,
em vossos claros olhos escondido. 

XV

 
Lembranças saudosas, se cuidais 
de me acabar a vida neste estado, 
 
não vivo com meu mal tão enganado, 
que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais 
a viver de algum bem desesperado; 
já tenho co a Fortuna concertado 
de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência, 
para quantos desgostos der a vida, 
cuide em quanto quiser o pensamento;

que, pois não há i outra resistência 
para tão certa queda da caída,
aparar-lhe hei debaixo o sofrimento. 

XVI

Se as penas com que Amor tão mal me trata 
quiser que tanto tempo viva delas 
 
que veja escuro o lume das estrelas 
em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata, 
secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas
mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado 
o pensamento e aspereza vossa, 
quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado, 
em tempo quando executar-se possa 
em vosso arrepender minha vingança. 

XVII

 
Quem vê, Senhora, claro e manifesto 
o lindo ser de vossos olhos belos, 
 
se não perder a vista só em vê los, 
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto; 
mas eu, por de vantagem merecê los, 
dei mais a vida e alma por querê los, 
donde já me não fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança 
e tudo quanto tenho, tudo é vosso, 
e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem aventurança 
o dar vos quanto tenho e quanto posso 
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

XVIII

 
Quando o Sol encoberto vai mostrando 
ao mundo a luz quieta e duvidosa, 
 
ao longo de üa praia deleitosa, 
vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando; 
ali, co a mão na face tão fermosa; 
aqui, falando alegre, ali cuidosa; 
agora estando queda, agora andando.

aqui esteve sentada, ali me viu, 
erguendo aqueles olhos tão isentos; 
aqui movida um pouco, ali segura;

qui se entristeceu, ali se riu; 
enfim, nestes cansados pensamentos 
passo esta vida vã, que sempre dura. 

XIX

Tempo é já que minha confiança 
se desça de üa falsa opinião; 
 
mas Amor não se rege por razão; 
não posso perder, logo, a esperança.

A vida, si; que üa áspera mudança 
não deixa viver tanto um coração. 
E eu na morte tenho a salvação? 
Si, mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva. 
Ah! dura lei de Amor, que não consente
quietação nüa alma que é cativa!

Se hei de viver, enfim, forçadamente, 
para que quero a glória fugitiva 
de üa esperança vã que me atormente?  

XX

 
Transforma se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
 
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sòmente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma. 

XXI

 
Passo por meus trabalhos tão isento
de sentimento grande nem pequeno,
 
que só pola vontade com que peno
me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai me Amor matando tanto a tento,
temperando a triaga co veneno,
que do penar a ordem desordeno,
porque não mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor sente,
e pagar me meu mal com mal pretende,
torna me com prazer como ao Sol neve.

Mas se me vês cos males tão contente,
faz se avaro da pena, porque entende
que quanto mais me paga, mais me deve.

XXII

Num jardim adornado de verdura,
a que esmaltam por cima várias flores,
 
entrou um dia a deusa dos amores,
com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo üa rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos milhores;
mas excediam muito às outras flores
as violas, na graça e fermosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,
qual daquelas três flores tomaria,
por mais suave, pura e mais fermosa?

Sorrindo se, o Minino lhe tornava:
todas fermosas são, mas eu queria
Viol'antes que lírio, nem que rosa. 

XXIII

 
Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
 
se só contigo, vendo te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d'ouro, que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
como quem não tem outra, hei de tomar te.

E se não for contente meu desejo,
dir lhe hei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte. 

XXIV

  
Está se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
 
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.

XXV

 
Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
 
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Vai se gastando a idade e cresce o dano; 
perde se me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde, e da esperança. 

XXVI

 
Grão tempo há já que soube da Ventura
a vida que me tinha destinada;
 
que a longa experiência da passada
me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura, 
bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destruí, não fique nada;
vingai vos desta vida, qu'inda dura.

Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
e, por que mais sentisse a falta dela,
de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
não foi milhor, vivei nesta alma minha,
que não tem a Fortuna poder nela. 

XXVII

 
Porque quereis, Senhora, que ofereça
a vida a tanto mal como padeço?
 
Se vos nasce do pouco que mereço,
bem por nascer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,
que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores,
com nada se restaura, mas deveis ma,
por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores
houver de ser igual convosco mesma,
vós só convosco mesma andai d'amores. 

XXVIII

Quando vejo que meu destino ordena
que por me exprimentar de vós me aparte,
 
deixando de meu bem tão grande parte
que a mesma culpa fica grave pena;

o duro disfavor que me condena,
quando pela memória se reparte,
endurece os sentidos de tal arte
que a dor da ausência fica mais pequena.

Pois como pode ser que na mudança
daquilo que mais quero estê tão fora
de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança;
porque mais sentirei partir, Senhora,
sem sentir muito a pena da partida. 

XXIX

 
Se algü'hora em vós a piedade
de tão longo tormento se sentira,
 
não consentira Amor que me partira
de vossos olhos, minha saüdade.

Apartei me de vós, mas a vontade,
que pelo natural n'alma vos tira,
me faz crer que esta ausência é de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.

Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão tristes lágrimas vingança
nos olhos de quem fostes mantimento.

E assi darei vida a meu tormento;
que, enfim, cá me achará minha lembrança
sepultado no vosso esquecimento. 

XXX

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
 
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo:–Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida. 

XXXI

Pensamentos, que agora novamente
cuidados vãos em mim ressuscitais,
 
dizei me: ainda não vos contentais
de terdes, quem vos tem, tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente
cad'hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo vos, pensamentos, alterados
e não quereis, d'esquivos, declarar me
que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar me;
que, se contra mim estais alevantados,
eu vos ajudarei mesmo a matar me. 

XXXII

 
Vós que, d'olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
 
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;

se ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que é tanto mais o amor despois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada s'apresenta,
possa deminuir o amor perfeito;

antes o dobra mais; e se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrairos s'acrescenta.

XXXIII

 
Se tomar minha pena em penitência
do erro em que caiu o pensamento,
 
não abranda, mas dobra meu tormento,
a isto, e a mais, obriga a paciência.

E se üa cor de morto na aparência,
um espalhar suspiros vãos ao vento,
em vós não faz, Senhora, movimento,
fique meu mal em vossa consciência.

E se de qualquer áspera mudança
toda a vontade isenta Amor castiga
(como eu vi bem no mal que me condena);

e se em vós não s'entende haver vingança,
será forçado (pois Amor me obriga)
que eu só de vossa culpa pague a pena. 

XXXIV

 
Se pena por amar vos se merece,
quem dela livre está? Ou quem isento?
 
Que alma, que razão, qu'entendimento,
em ver vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida s'oferece
que ocupar se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
em ver vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando
contino vos está, se vos ofende,
o mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim podeis, Senhora, ir começando,
que claro se conhece e bem se entende
amar vos quanto devo e quanto posso.

XXXV

 
Que modo tão sutil da natureza,
para fugir ao mundo, e seus enganos,
 
permite que se esconda em tenros anos,
debaixo de um burel tanta beleza!

Mas esconder se não pode aquela alteza
e gravidade de olhos soberanos,
a cujo resplandor entre os humanos
resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,
vendo a ou trazendo a na memória,
da mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,
cativo há de ficar; que Amor ordena
que de juro tenha ela esta vitória. 

XXXVI

 
Presença bela, angélica figura,
em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
 
gesto alegre, de rosas semeado,
entre as quais se está rindo a Fermosura;

olhos, onde tem feito tal mistura
em cristal branco o preto marchetado,
que vemos já no verde delicado
não esperança, mas enveja escura;

brandura, aviso e graça, que aumentando
a natural beleza cum desprezo,
com que, mais desprezada, mais se aumenta;

são as prisões de um coração que, preso,
seu mal ao som dos ferros vai cantando,
como faz a sereia na tormenta. 

XXXVII

Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
 
pois, por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos, pude vir me.

Já chegado era o fim de despedir me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir me.

Passei os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.

Em que figura, ou gesto desusado,
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?
 

XXXVIII

 
Arvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
 
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo 
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória. 

XXXIX

 
Oculto divinal se celebrava
no templo donde toda a criatura
 
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que o tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
nüa celeste e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,
e seu livre costume não sabendo
que nenhum confiado lhe fugia,

deixei me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.

XL

 
Senhora minha, se a Fortuna imiga,
que em minha fim com todo o Céu conspira, 
 
os olhos meus de ver os vossos tira, 
porque em mais graves casos me persiga;

comigo levo esta alma, que se obriga, 
na mor pressa de mar, de fogo, de ira, 
a dar vos a memória, que suspira, 
só por fazer convosco eterna liga.

Nest'alma, onde a Fortuna pode pouco, 
tão viva vos terei, que frio e fome 
vos não possam tirar, nem vãos perigos.

Antes co som da voz, trémulo e rouco,
bradando por vós, só com vosso nome 
farei fugir os ventos e os imigos. 

XLI

 
Aquela fera humana que enriquece 
sua presuntuosa tirania 
 
destas minhas entranhas, onde cria 
Amor um mal que falta quando crece;

Se nela o Céu mostrou (como parece) 
quanto mostrar ao mundo pretendia, 
porque de minha vida se injuria? 
Porque de minha morte s'enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória, 
Senhora, com vencer me e cativar me: 
fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar me, 
já me fico logrando desta glória 
de ver que tendes tanta de matar me.  

XLII

 
Amor, que o gesto humano n'alma escreve, 
vivas faíscas me mostrou um dia, 
 
donde um puro cristal se derretia 
por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via, 
foi convertida em fonte, que fazia 
a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade 
causa o primeiro efeito; o pensamento 
endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento, 
de lágrimas de honesta piedade 
lágrimas de imortal contentamento. 

XLIII

  
Como quando do mar tempestuoso 
o marinheiro, lasso e trabalhado, 
 
d'um naufrágio cruel já salvo a nado, 
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso 
o violento mar, e sossegado 
não entre nele mais, mas vai, forçado 
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta, 
de vossa vista fujo, por salvar me, 
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.  

XLIV

Ditoso seja aquele que somente 
se queixa de amorosas esquivanças; 
 
pois por elas não perde as esperanças
de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente, 
não sente mais que a pena das lembranças; 
porqu', inda que se tema de mudanças, 
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado 
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado 
d'erros em que não pode haver perdão, 
sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

XLV

  
Leda serenidade deleitosa, que 
representa em terra um paraíso; 
 
entre rubis e perlas doce riso; 
debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

presença moderada e graciosa, 
onde ensinando estão despejo e siso 
que se pode por arte e por aviso, 
como por natureza, ser fermosa;

fala, de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa; 
repouso, nela, alegre e comedido;

estas as armas são com que me rende 
e me cativa Amor; mas não que possa
despojar me da glória de rendido. 

XLVI

 
No mundo quis um tempo que se achasse 
o bem que por acerto ou sorte vinha; 
 
e, por exprimentar que dita tinha, 
quis que a Fortuna em mim se exprimentasse. 

Mas, por que meu destino me mostrasse 
que nem ter esperanças me convinha, 
nunca nesta tão longa vida minha 
cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado, 
por ver se se mudava a sorte dura; 
a vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado) 
já sei que deste meu buscar ventura, 
achado tenho já, que não a tenho. 

XLVII

 
Oh! quão caro me custa o entender te, 
molesto Amor, que, só por alcançar te, 
 
de dor em dor me tens trazido a parte 
onde em ti ódio e ira se converte!

Cuidei que para em tudo conhecer te, 
me não faltasse experiência e arte; 
agora vejo n'alma acrecentar te 
aquilo que era causa de perder te.

Estavas tão secreto no meu peito 
que eu mesmo, que te tinha, não sabia 
que me senhoreavas deste jeito.

Descobriste t'agora; e foi por via 
que teu descobrimento e meu defeito, 
um me envergonha e outro m'injuria. 

XLVIII

 
Quem quiser ver d'Amor üa excelência 
onde sua fineza mais se apura, 
 
atente onde me põe minha ventura, 
por ter de minha fé experiência.

Onde lembranças mata a longa ausência, 
em temeroso mar, em guerra dura, 
ali a saudade está segura, 
quando mor risco corre a paciência.

Mas ponha me Fortuna e o duro Fado 
em nojo, morte, dano e perdição, 
ou em sublime e próspera ventura;

Ponha me, enfim, em baixo ou alto estado; 
que até na dura morte me acharão
na língua o nome, n'alma a vista pura. 

XLIX

 
Se, despois d'esperança tão perdida, 
Amor pola ventura consentisse 
 
que inda algü'hora breve alegre visse 
de quantas tristes viu tão longa vida;

ü'alma já tão fraca e tão caída, 
por mais alto que a sorte me subisse, 
não tenho para mim que consentisse 
alegria tão tarde consentida.

Não tão somente Amor me não mostrou 
um'hora em que vivesse alegremente, 
de quantas nesta vida me negou;

mas inda tanta pena me consente, 
que co contentamento me tirou 
o gosto de algü'hora ser contente. 

L

 
Senhor João Lopes, o meu baixo estado 
ontem vi posto em grau tão excelente, 
 
que vós, que sois enveja a toda a gente, 
só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado 
que já vos fez, contente e descontente, 
lançar ao vento a voz tão docemente 
que fez o ar sereno e sossegado.

Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto 
ninguém diria em muitas; eu só, cego, 
magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego! 
Um, porque os corações obriga a tanto; 
outra, porque os estados desiguala.  

LI

 
Apolo e as nove Musas, discantando 
com a dourada lira, me influíam 
 
na suave harmonia que faziam, 
quando tomei a pena, começando: 

–Ditoso seja o dia e hora, quando 
tão delicados olhos me feriam! 
Ditosos os sentidos que sentiam 
estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou 
a roda à esperança, que corria 
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu se me em noite o claro dia; 
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível. 

LII

 
Dai me üa lei, Senhora, de querer vos, 
que a guarde, sô pena de enojar vos; 
 
que a fé que me obriga a tanto amar vos 
fará que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senão só ver vos, 
e dentro na minh'alma contemplar vos; 
que, se assi não chegar a contentar vos, 
ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva, 
que me dois lei de vida não consente, 
dai ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva, 
sem saber como vivo, tristemente,
mas contente porém de minha sorte.

LIII

 
Se tanta pena tenho merecida 
em pago de sofrer tantas durezas, 
 
provai, Senhora, em mim vossas cruezas, 
que aqui tendes ua alma oferecida.

Nela experimental, se sois servida, 
desprezos, disfavores e asperezas; 
que mores sofrimentos e firmezas 
sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quais serão? 
Forçado é que tudo se lhe renda; 
mas porei por escudo o coração.

Porque em tão dura e áspera contenda, 
é bem que, pois não acho defensão, 
com me meter nas lanças me defenda.
 

LV

 
Sempre a Razão vencida foi de Amor; 
mas, porque assi o pedia o coração, 
 
quis Amor ser vencido da Razão. 
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte, e nova dor! 
Estranheza de grande admiração, 
que perde suas forças a afeição, 
porque não perca a pena o seu rigor. 

Pois nunca houve fraqueza no querer,
mas antes muito mais se esforça assim 
um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim, 
não creio que é razão; mas há de ser 
inclinação que eu tenho contra mim.

LVI

 
Diversos dões reparte o Céu benino, 
e quer que cada üa um só possua; 
 
assi, ornou de casto peito a Lüa, 
ornamento do assento cristalino.

De graça, a Mãe fermosa do Minino, 
que nessa vista tem perdido a sua; 
Palas, de discrição, que imite a tua; 
do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama 
em ti o mais que tinha, e foi o menos, 
em respeito do Autor da natureza;

que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama, 
Diana, honestidade, e graça, Vénus, 
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

LVII

De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança, 
sinto vivo da morte o sentimento. 
 
Não sei para que é ter contentamento,
se mais há de perder quem mais alcança.

Mas dou vos esta firme segurança 
que, posto que me mate meu tormento, 
pelas águas do eterno esquecimento 
segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam, 
que com qualquer cous' outra se contentem; 
antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem, 
que com esquecimento desmereçam 
a glória que em sofrer tal pena sentem. 

LVIII

 
A Morte, que da vida o nó desata, 
os nós, que dá o Amor, cortar quisera 
 
na Ausência, que é contr' ele espada fera, 
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera, 
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência 
a Morte em apartar dum corpo a alma, 
duas num corpo o Amor ajunte e una;

porque assi leve triunfante a palma, 
Amor da Morte, apesar da Ausência, 
do Tempo, da Razão e da Fortuna.

LIX

 
Suspiros inflamados, que cantais 
a tristeza com que eu vivi tão ledo! 
 
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo 
que ao passar do Lete vos percais.

Escritos para sempre já ficais 
onde vos mostrarão todos co dedo 
como exemplo de males; que eu concedo 
que para aviso d'outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças 
d'Amor e da Fortuna, cujos danos 
alguns terão por bem aventuranças,

dizei lhe que os servistes muitos anos, 
e que em Fortuna tudo são mudanças, 
e que em Amor não há senão enganos. 

LX

 
Todo o animal da calma repousava,
só Liso o ardor dela não sentia;
 
que o repouso do fogo em que ardia
consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
o triste som das mágoas que dezia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade d'outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
no tronco d'üa faia, por lembrança,
escreveu estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que, de natura,
somente em ser mudável tem firmeza».

LXI

 
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
 
as forças lhe faltavam já e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,
não esmorece; mas, no pensamento,
(que a língua já não pode) seu intento
ao mar que lho cumprisse, encomendava.

Ó mar (dezia o moço só consigo),
já te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; não me veja...

Este meu corpo morto, lá o desvia
daquela torre. Sê me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!
 

LXII

 
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia,
 
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano:
outro se finge, preço põe diante,
quebra se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente! 

LXIII

 
Sentindo se tomada a bela esposa
de Céfalo, no crime consentido,
 
 para os montes fugia do marido;
e não sei se de astuta, ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
de amor cego e forçoso compelido,
após ela se vai como perdido,
já perdoando a culpa criminosa.

Deita se aos pés da Ninfa endurecida,
que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.

Ó força de afeição desatinada!
Que da culpa contra ele cometida,
perdão pedia à parte que é culpada! 

LXIV

 
Os vestidos Elisa revolvia
que lh'Eneias deixara por memória:
 
 doces despojos da passada glória,
doces, quando seu Fado o consentia.

Entr'eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste história;
e, como quem de si tinha a vitória,
falando só com ela, assi dezia:

–Fermosa e nova espada, se ficaste
só para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,

Sabe que tu comigo t'enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja me a tristeza da partida. 

LXV

 
O Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télefo temido,
 
por aquele que n'água foi metido,
a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia
conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura
que, ferido de ver vos, claramente
com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,
que fico como hidrópico doente,
que co beber lhe cresce mor secura. 

LXVI

 
Fiou se o coração, de muito isento,
de si cuidando mal, que tomaria
 
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto tem na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hipólito casto, que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito:

em mim vingou o amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito. 

LXVII

  
Oraio cristalino s'estendia
pelo mundo, da Aurora marchetada,
 
quando Nise, pastora delicada,
donde a vida deixava, se partia.

Dos olhos, com que o Sol escurecia,
levando a vista em lágrimas banhada,
de si, do Fado e Tempo magoada,
pondo os olhos no Céu, assi dezia:

–Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora,
qualquer alma alegrando descontente;

que a minha, sabe tu que, desd'agora,
jamais na vida a podes ver contente,
nem tão triste nenhüa outra pastora. 

LXVIII

 
Apartava se Nise de Montano,
em cuja alma partindo se ficava; 
 
que o pastor na memória a debuxava,
por poder sustentar se deste engano.

Pelas praias do Índico Oceano
sobre o curvo cajado s'encostava,
e os olhos pelas águas alongava,
que pouco se doíam de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade
(dezia) quis deixar me a que eu adoro,
por testemunhas tomo Céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,
levai também as lágrimas que choro,
pois assi me levais a causa delas! 

LXIX

  
Tomava Daliana por vingança
da culpa do pastor que tanto amava,
 
casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
o erro alheio e pérfida esquivança.

A discrição segura, a confiança,
as rosas que seu rosto debuxava,
o descontentamento lhas secava,
que tudo muda üa áspera mudança.

Gentil planta disposta em seca terra,
lindo fruito de dura mão colhido,
lembranças d'outro amor, e fé perjura,

tornaram verde prado em dura serra;
interesse enganoso, amor fingido,
fizeram desditosa a fermosura.  

LXX

 
Quantas vezes do fuso s'esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
 
tantas vezes de um áspero receio
salteado, Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
para podê lo ver não tinha meio:
ora, como curara o mal alheio
quem o seu mal tão mal curar sabia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,
com soluços, dezia (que a espessura
comovia, de mágoa, a piedade):

– Como pode a desordem da Natura
fazer tão diferentes na vontade
a quem fez tão conformes na ventura?

LXXI

 
Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
 
– Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

– E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
– Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

– Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?–Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
– Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena. 

LXXII

 
Em fermosa Leteia se confia,
por onde vaïdade tanta alcança,
 
que, tornada em soberba a confiança,
com os deuses celestes competia.

Porque não fosse avante esta ousadia
(que nascem muitos erros da tardança),
em efeito puseram a vingança,
que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,
não lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo duro tanta fermosura,

quis padecer em si a pena alheia;
mas, porque a morte Amor não apartasse,
ambos tornados são em pedra dura. 

LXXIII

 
Náiades, vós, que os rios habitais
que os saudosos campos vão regando,
 
de meus olhos vereis estar manando
outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós, que as setas atirais,
os fugitivos cervos derrubando,
outros olhos vereis que triunfando
derrubam corações, que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
e vinde, Ninfas minhas, se quereis
saber como de uns olhos nascem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis
nos seus as setas, e nos meus as águas. 

LXXIV

Num bosque que das Ninfas se habitava
Sílvia, Ninfa linda, andava um dia; 
 
subida nüa árvore sombria,
as amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava
a vir passar a sesta à sombra fria,
num ramo o arco e setas que trazia,
antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira
para tamanha empresa, não dilata,
mas com as armas foge ao Moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira:
–Ó pastores! fugi, que a todos mata,
senão a mim, que de matar me vivo. 

LXXV

 
Tal mostra dá de si vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
 
que as forças e o poder da natureza
com sua claridade mais apura.

Quem viu üa confiança tão segura,
tão singular esmalte da beleza,
que não padeça mais, se ter defesa
contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,
a razão sujeitei ao pensamento,
que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,
inda podeis tomar nova vingança
nas relíquias da vida, que escaparam. 

LXXVI

  
Pelos extremos raros que mostrou
em saber, Palas, Vénus em fermosa,
 
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Asia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
esprito e corpo em liga generosa,
esta mundana máquina lustrosa,
de só quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza
em vós, Senhoras, pondo em cada üa 
o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lüa,
a vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.
 

LXXVII

  
Na metade do Céu subido ardia
o claro, almo Pastor, quando deixavam
 
o verde pasto as cabras, e buscavam
a frescura suave da água fria.

Co a folha da árvore sombria,
do raio ardente as aves s'emparavam;
o módulo cantar, de que cessavam,
só nas roucas cigarras se sentia;

quando Liso pastor, num campo verde 
Natércia, crua Ninfa, só buscava
com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vás de quem por ti se perde,
para quem pouco te ama? (suspirava). 
[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama.
 

LXXVIII

  
Lá a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos d'ouro delicados,
 
e as flores, nos campos esmaltados,
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados,
de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,
– Não sei (dizia) ó Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada?
Responde Sílvio: – Amor não o consente,
que ofende as esperanças da tornada. 

LXXIX

 
Ofilho de Latona esclarecido,
que com seu raio alegra a humana gente,
 
o hórrido Piton, brava serpente,
matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco, e de arco foi ferido,
com ponta aguda d'ouro reluzente;
nas tessálicas praias, docemente,
pela Ninfa Peneia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,
ciência, diligências, nem respeito
de ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano
de quem era tão pouco em seu respeito,
eu que espero de um ser que é mais que humano?

LXXX

 
Alma minha gentil, que te partiste 
tão cedo desta vida descontente, 
 
repousa lá no Céu eternamente, 
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste, 
memória desta vida se consente, 
não te esqueças daquele amor ardente 
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer te 
algüa causa a dor que me ficou 
da mágoa, sem remédio, de perder te,

roga a Deus, que teus anos encurtou, 
que tão cedo de cá me leve a ver te, 
quão cedo de meus olhos te levou. 

LXXXI

 
Aquela triste e leda madrugada, 
cheia toda de mágoa e de piedade, 
 
enquanto houver no mundo saudade 
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada 
saía, dando ao mundo claridade, 
viu apartar se de ua outra vontade, 
que nunca poderá ver se apartada.

Ela só, viu as lágrimas em fio, 
que, de uns e d'outros olhos derivadas, 
s'acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas 
que puderam tornar o fogo frio, 
e dar descanso às almas condenadas.

LXXXII

 
Doces lembranças da passada glória, 
que me tirou Fortuna roubadora, 
 
deixai me repousar em paz ü'hora, 
que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história 
deste passado bem que nunca fora; 
ou fora, e não passara; mas já agora 
em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro d'esquecido, 
de quem sempre devera ser lembrado, 
se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nascido! 
Soubera me lograr do bem passado, 
se conhecer soubera o mal presente. 

LXXXIII

  
Amor, co a esperança já perdida, 
teu soberano templo visitei; 
 
por sinal do naufrágio que passei, 
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída 
me tens a glória toda que alcancei? 
Não cuides de forçar me, que não sei 
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança, 
despojos doces de meu bem passado, 
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança; 
e se inda não estás de mim vingado, 
contenta te com as lágrimas que choro.

LXXXIV

 
Males, que contra mim vos conjurastes, 
quanto há de durar tão duro intento? 
 
Se dura porque dura meu tormento, 
baste vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes 
derrubar meu tão alto pensamento, 
mais pode a causa dele, em que o sustento, 
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte, 
há de acabar o mal destes amores, 
dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d'ambos contente seja a sorte: 
vós, porque me acabastes, vencedores; 
e eu, porque acabei de vós vencido. 

LXXXV

 
Em prisões baixas fui um tempo atado, 
vergonhoso castigo de meus erros; 
 
inda agora arrojando levo os ferros 
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado, 
que Amor não quer cordeiros, nem bezerros; 
vi mágoas, vi misérias, vi desterros: 
parece me que estava assi ordenado.

Contentei me com pouco, conhecendo 
que era o contentamento vergonhoso, 
só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já'gora entendo, 
a Morte cega, e o Caso duvidoso, 
me fizeram de gostos haver medo.
 

LXXXVI

 
Cara minha inimiga, em cuja mão 
pôs meus contentamentos a ventura, 
 
faltou te a ti na terra sepultura, 
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão 
a tua peregrina fermosura; 
mas, enquanto me a mim a vida dura, 
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto 
que possam prometer te longa história 
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto; 
porque enquanto no mundo houver memória, 
será minha escritura teu letreiro. 

LXXXVII

Foi já num tempo doce cousa amar, 
enquanto m'enganava a esperança; 
 
 O coração, com esta confiança, 
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar! 
Como se desengana üa mudança! 
Que, quanto é mor a bem aventurança, 
tanto menos se crê que há de durar!

Quem já se viu contente e prosperado, 
vendo se em breve tempo em pena tanta, 
razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado, 
não o magoa a pena nem o espanta, 
que mal se estranhará o costumado. 

LXXXVIII

 
Que poderei do mundo já querer, 
que naquilo em que pus tamanho amor, 
 
não vi senão `desgosto e desamor, 
e morte, enfim, que mais não pode ser!

Pois vida me não farta de viver,
pois já sei que não mata grande dor, 
se cousa há que mágoa dê maior, 
eu a verei; que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou 
de quanto mal me vinha; já perdi 
o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi, 
na morte a grande dor que me ficou: 
parece que para isto só nasci! 

LXXXIX

 
Pois meus olhos não cansam de chorar 
tristezas, que não cansam de cansar me; 
 
pois não abranda o fogo em que abrasar me 
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar 
a parte donde não saiba tornar me; 
nem deixe o mundo todo de escutar me, 
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios, ou em vales, 
piedade mora, ou dentro mora Amor 
em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males 
e curem sua dor com minha dor; 
que grandes mágoas podem curar mágoas.

XC

  
Um mover d'olhos, brando e piadoso, 
sem ver de quê; um riso brando e honesto, 
 
quase forçado; um doce e humilde gesto, 
de qualquer alegria duvidoso;

um despejo quieto e vergonhoso; 
um repouso gravíssimo e modesto; 
üa pura bondade, manifesto 
indício da alma, limpo e gracioso;

um encolhido ousar; üa brandura; 
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste fermosura 
da minha Circe, e o mágico veneno 
que pôde transformar meu pensamento. 

XCI

  
Fermosos olhos que na idade nossa 
mostrais do Céu certissimos sinais, 
 
se quereis conhecer quanto possais, 
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa 
aquele riso com que a vida dais; 
vereis como de Amor não quero mais, 
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes, 
como num claro espelho, ali vereis 
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis: 
tanto gosto levais de minha pena! 

XCII

 
Mudam se os tempos, mudam se as vontades, 
muda se o ser, muda se a confiança; 
 
todo o mundo é composto de mudança, 
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades, 
diferentes em tudo da esperança; 
do mal ficam as mágoas na lembrança, 
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto, 
que já coberto foi de neve fria, e, enfim, 
converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar se cada dia, 
outra mudança faz de mor espanto, 
que não se muda já como soía. 

XCIII

  
Conversação doméstica afeiçoa, 
ora em forma de boa e sã vontade, 
 
ora de üa amorosa piedade, 
sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa 
com desamor e pouca lealdade, 
logo vos faz mentira da verdade 
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas, 
que o pensamento julga na aparência, 
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência, 
e não falo senão verdades puras 
que me ensinou a viva experiência. 

XCIV

 
Despois que quis Amor que eu só passasse 
quanto mal já por muitos repartiu, 
 
entregou me à Fortuna, porque viu 
que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse 
no tormento que o Céu me permitiu, 
o que para ninguém se consentiu, 
para mim só mandou que se inventasse.

Eis me aqui vou com vário som gritando,
copioso exemplário para a gente 
que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando. 
Triste quem seu descanso tanto estreita, 
que deste tão pequeno está contente! 
 

XCV

 
Ondados fios d'ouro reluzente, 
que, agora da mão bela recolhidos, 
 
agora sobre as rosas estendidos, 
fazeis que sua beleza se acrecente;

Olhos, que vos moveis tão docemente, 
em mil divinos raios entendidos, 
se de cá me levais alma e sentidos, 
que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza 
de perlas e corais nasce e parece, 
se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza 
de si, em nova glória, a alma se esquece, 
que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
 

XCVI

  
Bem sei, Amor, que é certo o que receio; 
mas tu, porque com isso mais te apuras, 
 
de manhoso mo negas, e mo juras 
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio, 
e não vejo meus danos às escuras; 
e tu contudo tanto me asseguras, 
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano, 
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego! 
Que, no meio do justo desengano, 
me possa inda cegar um Moço cego! 

XCVII

  
Com grandes esperanças já cantei, 
com que os deuses no Olimpo conquistara; 
 
despois vim a chorar porque cantara 
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei, 
custa me esta lembrança só tão cara 
que a dor de ver as mágoas que passara 
tenho pola mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento 
dá causa que outro n'alma se acrescente, 
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente? 
Oh! ocioso e cego pensamento! 
Ainda eu imagino em ser contente?  

XCVIII

  
Auela que, de pura castidade, 
de si mesma tomou cruel vingança 
 
por üa breve e súbita mudança, 
contrária a sua honra e qualidade

(venceu à fermosura a honestidade, 
venceu no fim da vida a esperança 
porque ficasse viva tal lembrança, 
tal amor, tanta fé, tanta verdade!),

de si, da gente e do mundo esquecida, 
feriu com duro ferro o brando peito, 
banhando em sangue a força do tirano.

[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito ! 
Que, dando breve morte ao corpo humano, 
tenha sua memória larga vida!  

XCIX

  
No tempo que de Amor viver soía, 
nem sempre andava ao remo ferrolhado; 
 
antes agora livre, agora atado, 
em várias flamas variamente ardia. 

Que ardesse num só fogo, não queria 
O Céu, porque tivesse exprimentado 
que nem mudar as causas ao cuidado 
mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento, 
foi como quem co peso descansou, 
por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento, 
pois para passatempo seu tomou 
este meu tão cansado sofrimento! 

C

 
Quando de minhas mágoas a comprida
maginação os olhos me adormece,
 
em sonhos aquela alma me aparece
que para mim foi sonho nesta vida.

Lá nüa soïdade, onde estendida
a vista pelo campo desfalece,
corro par'ela; e ela então parece
que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: Não me fujais, sombra benina!
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
como quem diz que já não pode ser),

torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...
antes que diga mene, alardo, e vejo
que nem um breve engano posso ter. 

CI

 
Ah! minha Dinamene! Assi deixaste
quem não deixara nunca de querer-te?
 
Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,
tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte
me deixou, que tão cedo o negro manto
em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
que inda tenho por pouco o viver triste? 

CII

 
Quem fosse acompanhando juntamente 
por esses verdes campos a avezinha 
 
que, despois de perder um bem que tinha, 
não sabe mais que cousa é ser contente!

[E] quem fosse apartando-se da gente, 
ela, por companheira e por vizinha, 
me ajudasse a chorar a pena minha, 
eu a ela o pesar que tanto sente!

Ditosa ave! que, ao menos, se a Natura 
a seu primeiro bem não dá segundo, 
dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura, 
que, para respirar, lhe falte o vento, 
e, para tudo, enfim, lhe falte o mundo! 

CIII

  
Cantando estava um dia bem seguro quando, 
passando, Sílvio me dizia 
 
(Sílvio, pastor antigo, que sabia 
pelo canto das aves o futuro):

–Méris, quando quiser o fado escuro, 
oprimir-te virão em um só dia 
dous lobos; logo a voz e a melodia 
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou 
quanto gado vacum pastava e tinha, 
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou 
a cordeira gentil que eu tanto amava, 
perpétua saudade da alma minha! 

CIV

 
Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
 
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
üas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.

CV

 
Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
 
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma. 

CVI

 
Océu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
 
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:

Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

CVII

 
Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
 
Que o tempo que se vai não torna mais,
e se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,
porque estes tão ligeiros que passais,
nem todos para um gosto são iguais,
nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
que quase é outra causa: porque os dias
têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
que do contentamento são espias.

CVIII

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
 
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a nao querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças! 

CIX

 
Eu cantei já, e agora vou chorando 
o tempo que cantei tão confiado; 
 
parece que no canto já passado 
se estavam minhas lágrimas criando. 

Cantei; mas se me alguém pergunta: –Quando?
–Não sei; que também fui nisso enganado. 
É tão triste este meu presente estado 
que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente, 
contentamentos não, mas confianças; 
cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente? 
Mas eu que culpa ponho às esperanças 
onde a Fortuna injusta é mais que os erros?  

CX

 
Na desesperação já repousava 
o peito longamente magoado, 
 
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;

quando üa sombra vã me assegurava 
que algum bem me podia estar guardado 
em tão fermosa imagem que o treslado 
n'alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente 
o coração áquilo que deseja, 
quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou 
contente; que, posto que maior meu dano seja, 
fica-me a glória já do que imagino. 

CXI

 
Eu vivia de lágrimas isento, 
num engano tão doce e deleitoso 
 
que em que outro amante fosse mais ditoso, 
não valiam mil glórias um tormento. 

Vendo-me possuir tal pensamento, 
de nenhüa riqueza era envejoso; 
vivia bem, de nada receoso, 
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou 
deste meu tão contente e alegre estado, 
e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem só me deixou 
lembranças, que me matam cada hora, 
trazendo-me à memória o bem passado.  

CXII

 
Indo o triste pastor todo embebido 
na sombra de seu doce pensamento, 
 
tais queixas espalhava ao leve vento 
cum brando suspirar da alma saído:

–A quem me queixarei, cego, perdido, 
pois nas pedras não acho sentimento? 
Com quem falo? A quem digo meu tormento 
que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes? 
Porque o olhar-me tanto me encareces? 
Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes! 
Quanto mais mal me vês, mais te endureces! 
Assi que co mal cresce a causa dele. 

CXIII

 
Lembranças que lembrais meu bem passado 
para que sinta mais o mal presente, 
 
deixai-me (se quereis) viver contente, 
não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado 
viver (como se vê) tão descontente, 
venha (se vier) o bem por acidente, 
e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória, 
pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assi que nada perde, quem perdida 
a esperança traz de sua glória, 
se esta vida há-de ser sempre em tormento. 

CXIV

 
Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados! 
Quão asinha em meu dano vos mudastes! 
 
Passou o tempo que me descansastes,
agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados, 
para mor dor da dor que me ordenastes; 
então nü'hora juntos mos levastes, 
deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver, 
gostos, que assi passais tão de corrida, 
que fico duvidoso se vos vi:

sem vós já me não fica que perder, 
se não se for esta cansada vida, 
que por mor perda minha não perdi. 

CXV

  
Ah! imiga cruel, que apartamento 
é este que fazeis da pátria terra? 
 
Quem do paterno ninho vos desterra, 
glória dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da fortuna o movimento 
e dos ventos cruéis a dura guerra? 
Ver brenhas d'água, e o mar feito em serra, 
levantado de um vento e d'outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes, 
para convosco o Céu tanta ventura, 
que seja mor que aquela que esperardes.

E só nesta verdade ide segura: 
que ficam mais saudades com partirdes, 
do que breves desejos de chegardes. 
 

CXVI

  
Aqueles claros olhos que chorando 
ficavam quando deles me partia, 
 
agora que farão? Quem mo diria? 
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando 
deles me vim tão longe de alegria? 
Ou s'estarão aquele alegre dia 
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos? 
Se acharão num momento muitos anos? 
Se falarão co as aves e cos ventos? 

Oh! bem-aventurados fingimentos, 
que, nesta ausência, tão doces enganos 
sabeis fazer aos tristes pensamentos! 

CXVII

 
Quando cuido no tempo que, contente, 
vi as pérolas, neve, rosa e ouro, 
 
como quem vê por sonhos um tesouro, 
parece tenho tudo aqui presente.

Mas tanto que se passa este acidente, 
e vejo o quão distante de vós mouro, 
temo quanto imagino por agouro, 
porque d'imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura 
vos vi, Senhora (se, assi dizendo, posso 
co coração seguro estar sem medo);

Agora, em tanto mal não mo assegura 
a própria fantasia e nojo vosso: 
eu não posso entender este segredo!  

CXVIII

  
Quem vos levou de mim, saudoso estado, 
que tanta sem-razão comigo usastes? 
 
Quem foi, por quem tão presto me negastes, 
esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado 
tão duro, tão cruel, qual m'ordenastes; 
a fé, que tínheis dado, me negastes, 
quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal; 
Fortuna, que tem tudo a sua mercê, 
amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val, 
que quem naceu chorando, justo é 
que pague com chorar o que perdeu.
 

CXIX

 
Senhora já dest'alma, perdoai 
de um vencido de Amor os desatinos,
 
e sejam vossos olhos tão beninos 
com este puro amor, que d'alma sai.

A minha pura fé somente olhai, 
e vede meus extremos se são finos; 
e se de algüa pena forem dinos, 
em mim, Senhora minha, vos vingai.

Não seja a dor que abrasa o triste peito 
causa por onde pene o coração, 
que tanto em firme amor vos é sujeito.

Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão, 
que, sendo raro em tudo vosso objeito, 
possa morar em vós ingratidão. 
 

CXX

  
Cá nesta Babilónia, donde mana 
matéria a quanto mal o mundo cria; 
 
cá onde o puro Amor não tem valia, 
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana, 
e pode mais que a honra a tirania; 
cá, onde a errada e cega Monarquia 
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza 
com esforço e saber pedindo vão 
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão, 
cumprindo o curso estou da natureza. 
Vê se me esquecerei de ti, Sião! 

CXXI

  
Dizei, Senhora, da Beleza ideia: 
para fazerdes esse áureo crino, 
 
onde fostes buscar esse ouro fino? 
de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia, 
esse respeito, de um império dino? 
Se o alcançastes com saber divino, 
se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes 
as perlas preciosas orientais 
que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes, 
vigiai-vos de vós, não vos vejais, 
fugi das fontes: lembre-vos Narciso. 
 

CXXII

 
Doce contentamento já passado, 
em que todo meu bem já consistia,
 
quem vos levou de minha companhia 
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado 
naquelas breves horas de alegria, 
quando minha ventura consentia 
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi, cruel e dura, 
aquela que causou meu perdimento, 
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura, 
que não pode nenhum impedimento 
fugir do que [lhe] ordena sua estrela. 

CXXIII

  
Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
 
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano!
Se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino. 

CXXIV

 
Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
 
por evitar do ócio a castidade
na caça o tempo Délia despendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

- Tu vás com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando,
mas as minhas enredam o sentido.

–Melhor é (respondia a deusa pura)
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido. 
 

CXXV

 
Este amor que vos tenho, limpo e puro, 
de pensamento vil nunca tocado, 
 
em minha tenra idade começado, 
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado, 
nem o supremo bem ou baixo estado, 
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa; 
tudo por terra o Inverno e Estio 
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa, 
e que essa ingratidão tudo me enjeita, 
traz este meu amor sempre em desmaio 

CXXVI

  
Fortuna em mim guardando seu direito 
em verde derrubou minha alegria. 
 
Oh! quanto se acabou naquele dia, 
cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito 
que a tal bem, tal descanso se devia, 
por não dizer o mundo que podia 
achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a Fortuna o fez por descontar-me 
tamanho gosto , em cujo sentimento 
a memória não faz senão matar-me , 

que culpa pode dar-me o sofrimento, 
se a causa que ele tem de atormentar-me, 
eu tenho de sofrer o seu tormento? 

CXXVII

 
Já não sinto, Senhora, os desenganas 
com que minha afeição sempre tratastes, 
 
nem ver o galardão que me negastes, 
merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos 
de ver por quem, Senhora, me trocastes; 
mas em tal caso vós só me vingastes 
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança, 
que o ofendido toma do culpado, 
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu de vossos males e esquivança, 
de que agora me vejo bem vingado, 
não o quisera eu tanto à vossa custa.  

CXXVIII

Memória de meu bem, cortado em flores 
por ordem de meus tristes e maus Fados, 
 
deixai-me descansar com meus cuidados 
nesta inquietação de meus amores.

Basta-me o mal presente, e os temores 
dos sucessos que espero infortunados, 
sem que venham, de novo, bens passados 
afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi nua hora quanto em termos 
tão vagarosos e largos alcancei; 
leixai-me, pois, lembranças desta glória.

Cumpre acabe a vida nestes ermos, 
porque neles com meu mal acabarei 
mil vidas, não ua só, dura memória! 

CXXIX

 
Na ribeira do Eufrates assentado, 
discorrendo me achei pela memória 
 
aquele breve bem, aquela glória, 
que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado 
me foi: Como não cantas a história 
de teu passado bem, e da vitória 
que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes, que a quem canta se lhe esquece 
o mal, inda que grave e rigoroso? 
Canta, pois, e não chores dessa sorte.

Respondo com suspiros: Quando crece 
a muita saudade, o piadoso 
remédio é não cantar senso a morte.  

CXXX

 
Num tão alto lugar, de tanto preço, 
este meu pensamento posto vejo, 
 
que desfalece nele inda o desejo, 
vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixesa em mim conheço, 
acho que cuidar nele é grão despejo, 
e que morrer por ele me é sobejo 
e mor bem para mim, do que mereço.

O mais que natural merecimento 
de quem me causa um mal tão duro e forte, 
o faz que vá crecendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento, 
porque inda que este mal me causa a morte, 
Un bel morir tutta la vita onora. 

CXXXI

 
Odia em que eu nasci, moura e pereça, 
não o queira jamais o tempo dar, 
 
não torne mais ao mundo, e, se tornar, 
eclipse nesse passo o sol padeça. 

luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça, 
mostre o mundo sinais de se acabar, 
nasçam-lhe monstros, sangue chova 
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.

s pessoas pasmadas de ignorantes, 
as lágrimas no rosto, a cor perdida, 
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes, 
que este dia deitou ao mundo a vida 
mais desgraçada que jamais se viu! 

CXXXII

 
Olhos fermosos, em quem quis Natura 
mostrar do seu poder altos sinais, 
 
se quiserdes saber quanto possais, 
vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura, 
no que eu padeço retratada estais; 
que, se eu passo tormentos desiguais, 
muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:
ser vosso; e só de ser vosso me arreio, 
porque o vosso penhor em mim se assele.

!Tão me lembro de mim quando vos vejo, 
nem do mundo; e não erro, porque creio, 
que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.
 

CXXXIII

 
O tempo acaba o ano, o mês e a hora, 
a força, a arte, a manha, a fortaleza; 
 
o tempo acaba a fama e a riqueza, 
o tempo o mesmo tempo de si chora.

tempo busca e acaba o onde mora 
qualquer ingratidão, qualquer dureza;
mas neo pode acabar minha tristeza,
enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro, 
e o mais ledo prazer em choro triste; 
o tempo a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro 
o peito de diamante, onde consiste 
a pena e o prazer desta esperança. 
 

CXXXIV

  
Posto me tem Fortuna em tal estado, 
e tanto a seus pés me tem rendido! 
 
Não tenho que perder já, de perdido, 
não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado; 
daqui dou o viver já por vivido; 
que, aonde o mal é tão conhecido, 
também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero, 
que bem outra esperança não convém, 
e curarei um mal com outro mal 

E, pois do bem tão pouco bem espero, 
já que o mel este só remédio tem, 
não me culpem em querer remédio tal.
 

CXXXV

  
Quando se vir com água o fogo arder,
e misturar co dia a noite escura,
 
e a terra se vir naquela altura
em que se vem os Céus prevalecer;

o Amor por razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa formosura
então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minha alma, e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos. 

CXXXVI

 
A fermosura fresca serra, 
e a sombra dos verdes castanheiros, 
 
o manso caminhar destes ribeiros, 
donde toda a tristeza se desterra; 

o rouco som do mar, a estranha terra, 
o esconder do sol pelos outeiros, 
o recolher dos gados derradeiros, 
das nuvens pelo ar a branda guerra; 

enfim, tudo o que a rara natureza 
com tanta variedade nos ofrece, 
me está (se não te vejo) magoando. 

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece; 
sem ti, perpetuamente estou passando 
nas mores alegrias, mor tristeza.

CXXXVII

 
Diana prateada, esclarecia 
com a luz que do claro Febo ardente, 
 
por ser de natureza transparente, 
em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía, 
quando me apareceu o excelente 
raio de vosso aspecto, diferente 
em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores, 
e tão propínquo a ser de todo vosso, 
louvei a hora clara, e a noite escura,

Sois nela destes cor a meus amores; 
donde colijo claro que não posso 
de dia para vós já ter ventura.
 

CXXXVIII

  
Quando a suprema dor muito me aperta, 
se digo que desejo esquecimento, 
 
é força que se faz ao pensamento, 
de que a vontade livre desconserta.

Assi, de erro tão grave me desperta 
a luz do bem regido entendimento, 
que mostra ser engano ou fingimento 
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente 
me representa o bem de que careço, 
faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é, logo, a pena que padeço, 
pois que da causa dela em mim se sente 
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
 

CXXXIX

  
Quando, Senhora, quis Amor que amasse 
essa grã perfeição e gentileza, 
 
logo deu por sentença que a crueza 
em vosso peito amor acrescentasse.

Determinou que nada me apartasse, 
nem desfavor cruel, nem aspereza; 
mas que em minha raríssima firmeza 
vossa isenção cruel se executasse.

E, pois tendes aqui oferecida e
sta alma vossa a vosso sacrifício, 
acabai de fartar vossa vontade.

Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida; 
acabará morrendo em seu oficio, 
sua fé defendendo e lealdade. 

CXL

  
Que pode já fazer minha ventura
que seja para meu contentamento.,
 
Ou como fazer devo fundamento
de cousa que o não tem, nem é segura?

Que pena pode ser tão certa e dura
que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
os males, se com eles mais se apura?

Como quem se costuma de pequeno
com peçonha criar por mão ciente,
da qual o uso já o tem seguro;

assi de acostumado co veneno,
o uso de sofrer meu mal presente
me faz não sentir já nada o futuro. 

CXLI

 
Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
com humano saber, e não divino,
 
ficará de tamanha culpa dino
quamanha ficais tendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvar dar-vos,
por mais que raro seja e peregrino:
que vossa fermosura eu imagino
que Deus a Ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
em posse pôr de prenda tão subida,
como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
que, pois mercê tamanha me fizestes,
de mim será jamais nunca esquecida. 

CXLII

 
Se de vosso fermoso e lindo gesto
nasceram lindas flores para os olhos,
 
que para o peito são duros abrolhos,
em mim se vê mui claro e manifesto:

pois vossa fermosura e vulto honesto
em os ver, de boninas vi mil molhos;
mas se meu coração tivera antolhos,
não vira em vós seu dano o mal funesto.

Um mal visto por bem, um bem tristonho,
que me traz elevado o pensamento
em mil, porém diversas, fantasias,

nas quais eu sempre ando, e sempre sonho;
e vós não cuidais mais que em meu tormento,
em que fundais as vossas alegrias. 

CXLIII

  
Sempre, cruel Senhora, receei,
medindo vossa grã desconfiança,
 
que desse em desamor vossa tardança,
e que me perdesse eu, pois vos amei.

Perca-se, enfim, já tudo o que esperei,
pois noutro amor já tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
quanto eu encobri sempre o que vos dei.

Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
de tudo o que em mim há vos fiz s
enhora. Prometeis e negais o mesmo Amor.

Agora tal estou que, de perdido,
não sei por onde vou, mas algü'hora
vos dará tal lembrança grande dor. 

CXLIV

 
Sustenta meu viver üa esperança
derivada de um bem tão desejado
 
que, quando nela estou mais confiado,
mor dúvida me põe qualquer mudança.

E quando inda este bem na mor pujança
de seus gostos me tem mais enlevado,
me atormenta então ver eu que, alcançado
será por quem de vós não tem lembrança.

Assi, que nestas redes enlaçado,
a penas dou a vida , sustentando
üa nova matéria a meu cuidado .

Suspiros d'alma tristes arrancando,
dos silvos de ua pedra acompanhado,
estou matérias tristes lamentando. 

CXLV

  
Vencido está de Amor     meu pensamento
o mais que pode ser         vencida a vida,
  
sujeita a vos servir           instituída,
oferecendo tudo                a vosso intento.

Contente deste bem,        louva o momento,
ou hora em que se viu      tão bem perdida;
mil vezes desejando          a tal ferida,
outra vez renovar             seu perdimento.

Com essa pretensão          está segura
a causa que me guia          nesta empresa,
tão estranha, tão doce,     honrosa e alta.

Jurando não seguir           outra ventura,
votando só por vós           rara firmeza,
ou ser no vosso amor       achado em falta.
  

CXLVI

  
El vaso reluciente y cristalino,
de Ángeles agua clara y olorosa,
 
 de blancas e da ornado y fresca rosa
ligado con cabellos de oro fino;

bien claro parecía el don divino
labrado por la mano artificiosa
de aquella blanca Ninfa, graciosa
más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado de los blandos miembros bellos,
y en el agua vuestra ánima pura;

la seda es la blancura, e los cabellos
son las prisiones, y la ligadura
con que mi libertad fue asida dellos. 

CXLVII

Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,
y en lágrimas pasáis la noche y día,
 
mirad si es llanto este que os envia
aquella por quien vos tantas vertistes

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes,
y si ella lo es, oh gran ventura mia!
por muy bien empleadas las habría
mil cuentas que por esta sola distes.

Mas una cosa mucho deseada,
aunque se vea cierta, no es creída,
cuanto más esta, que me es enviada.

Pero digo que aunque sea fingida,
que basta que por lágrima sea dada,
porque sea por lágrima tenida. 

CXLVIII

  
Se a Fortuna inquieta e mal olhada,
que a justa lei do Céu consigo infama,
 
a vida quieta, que ela mais desama,
me concedera, honesta e repousada;

pudera ser que a Musa, alevantada
com luz de mais ardente e viva flama.
fizera ao Tejo lá na pátria cama
adormecer co som da lira amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,
que me escurece a Musa fraca e lassa,
louvor de tanto preço não sustenta;

a vossa de louvar-me pouco escassa,
outro sujeito busque valeroso,
tal qual em vós ao mundo se apresenta. 

CXLIX

À morte de D. António de Noronha

  
Em flor vos arrancou, de então crecida
(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,
 
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.

üa só razão tenho conhecida
com que tamanha mágoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte,
que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mãos do fero Marte,
na memória das gentes vivereis. 

CL

À sepultura de D. Fernando de Castro

 
Debaixo desta pedra está metido,
das sanguinosas armas descansado,
 
o capitão ilustre, assinalado,
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,
e da enveja da fama tão cantado,
este, pois, só agora sepultado,
está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia
por este Viriato que criaste,
e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste,
nem por isso Cartago está contente. 

CLI

A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu, pelos mesmos consoantes, mandando-lhe perguntar quem fora o primeiro Poeta que fizera Sonetos

De um tão felice engenho, produzido
de outro, que o claro Sol não viu maior,
 
é trazer cousas altas no sentido,
todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,
filósofo e poeta conhecido,
discípulo do Músico amador
que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,
cantando aquele mal, que eu já passei,
do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),
Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo
dos segredos que move o cego Rei. 

CLII

  
Despois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu verde pinheiro,
 
em piedade o vão furar primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno! 

CLIII

Resposta do autor a um Soneto, pelos mesmos consoantes

  
De tão divino acento e voz humana,
de tão doces palavras peregrinas,
 
bem sei que minhas obras não são dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farão enveja à cópia mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,
as filhas de Mnemósine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras,

a minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa d'alta, a minha d'envejosa.
 

CLIV

A o segundo conde de Redondo, D. João Coutinho

Dos ilustres antigos que deixaram
tal nome, que igualou fama à memória,
 
ficou por luz do tempo a larga história
dos feitos em que mais se assinalaram.

Se se com cousas destes cotejaram
mil vossas, cada üa tão notória,
vencera a menor delas a mor glória
que eles em tantos anos alcançaram.

A glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo cada um vários caminhos,
estátuas levantando no seu Templo.

Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,
ilustre Dom João, com melhor nome
a vós encheis de glória e a nós de exemplo.
 

CLV

 
Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados,
 
e não em peito timido encerrados
e desfeitos despois em chuva e vento;

animo da cobiça baixa isento,
dino por isso só de altos estados,
fero açoute dos nunca bem domados
povos do Malabar sanguinolento;

gentileza de membros corporais,
ornados de pudica continência,
obra por certo rara de natura:

estas virtudes e outras muitas mais,
dinas todas da homérica eloquência,
jazem debaixo desta sepultura 

CLVI

 
Não passes, caminhante! Quem me chama?
– üa memória nova e nunca ouvida,
 
de um que trocou finita e humana vida,
por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?
– Quem derramar seu sangue não duvida
por seguir a bandeira esclarecida
de um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrificio,
que a Deus se fez e ao mundo juntamente,
apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente,
que sempre deu sua vida claro indício
de vir a merecer tão santa morte. 

CLVII

 
No mundo poucos anos, e cansados,
vivi, cheios de vil miséria dura;
 
foi-me tão cedo a luz do dia escura,
que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto
que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha! 

CLVIII

 
Que levas, cruel Morte?- Um claro dia.
- A que horas o tomaste?- Amanhecendo.
 
- Entendes o que levas?- Não o entendo.
- Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.

Seu corpo quem o goza?- A terra fria.
- Como ficou sua luz?- Anoitecendo.
- Lusitânia que diz?- Fica dizendo:
Enfim, não mereci Dona Maria.

Mataste quem a viu?- Já morto estava.
- Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.
- E quem o faz calar?- Minha vontade.

Na corte que ficou?- Saudade brava.
- Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;
mas fica que chorar sua beldade.
 

CLIX

 
Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
 
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplandor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já *se* lhe devia.

CLXI

 
Os reinos e os impérios poderosos
que em grandeza no mundo mais cresceram,
 
ou por valor de esforço floreceram
ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;
doze pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosas.

Ao nosso Portugal (que agora vemos
tão diferente de seu ser primeiro),
os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro
do braganção estado, há mil extremos
iguais ao sangue, e mores que a idade.
 

CLXII

Ilustre o dino ramo dos Meneses,
aos quais o prudente e largo Céu
 
(que errar não sabe), em dote concedeu
rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus reveses,
ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no Mar alto Eritreu,
e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito
o Pirata insolente, que se espante
e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante,
o seja só co sangue de Turquia! 

CLXIII

 
Vós, Ninfas da gangética espessura,
cantai suavemente, em vez sonora,
 
um grande Capitão, que a roxa Aurora
dos filhos defendeu da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,
que na Áurea Quersoneso afouta mora,
para lançar do caro ninho fora
aqueles que mais podem que a ventura.

Mas um forte Leão, com pouca gente,
a multidão tão fera como nécia
destruindo castiga e torna fraca.

Pois, ó Ninfas, cantai! que claramente
mais do que Leonidas fez em Grécia,
o nobre Leonis fez em Malaca. 

CLXIV

A D. Luís de Ataíde, Vizo-Rei

 
Que vençais no Oriente tantos Reis,
que de novo nos deis da Índia o Estado,
 
que escureceis a fama que ganhado
tinham os que a ganharam a infiéis;

que do tempo tenhais vencido as leis,
que tudo, enfim, vençais co tempo armado,
mais é vencer na pátria, desarmado,
os monstros e as Quimeras que venceis.

E assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e por armas fazer que, sem segundo,
vosso nome no mundo ouvido seja,

o que vos dá mais nome inda no mundo,
é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas ingratidões, tão grande enveja! 

CLXV

 
Vós outros, que buscais repouso certo
na vida, com diversos exercícios;
 
a quem, vendo do mundo os benefícios,
o regimento seu está encoberto;

dedicai, se quereis, ao desconcerto
novas hontas e cegos sacrifícios;
que, por castigo igual de antigos vícios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.

Não caiu neste modo de castigo
quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente
crê que acontecimentos há no mundo.

A grande experiência é grão perigo;
mas o que a Deus é justo e evidente
parece injusto aos homens e profundo. 

CLXVI

 
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
 
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e nao sa ~e a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser criadas
e cousas criadas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
 

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